quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Fantasias de um bêbado

Eu bebo porque gosto do gosto do álcool. Rascante, traiçoeiro, filha da puta e saboroso. Bebo pra esquecer onde trabalho, das pessoas que sou obrigado a conviver. Dos frouxos, dos almofadinhas, das topeiras de salto alto, das antas de unhas feitas, dos jumentos que me dão ordens. Dos tatus que nascem em árvores, como diz o povo. Eu bebo porque a porra da ressaca me deixa esquecer o caminho para a repartição, escritório, enfim, qualquer merda que queiram chamar. Os sorrisinhos de merda, os tapinhas nas costas, salas fechadas e envidraçadas (que viadagem do caralho). Eu como todas da faxina. Todas. Quando faço serão, com minha inseparával garrafinha de metal, deitada dentro da gaveta, vou tomando coragem e traço as pobres coitadas, na mesa da minha sala. Vestidinhas de bate-bola, com um cheirinho de cecê delicioso. Como o pão que o diabo amassou e ganho a carne de lambuja, sempre bem-passada.


Hoje tinha que ir ao médico. Foi foda pra acordar, caprichei no gelobol ontem à noite e desmoronei no sofá. Levantei torto, pescoço arregaçado, cheio de dor. Uma pica. Saí correndo pra rua e consegui alcançar o ônibus. Subi os degraus e vi que tinha esquecido o dinheiro da passagem:


- Puta que pariu! Cadê as moedas?!?! – e apalpava os bolsos sem resultado.


- Tá tranquilo, parceiro. Dá a volta e entra por trás – resolveu-me o motorista.

Pensei em fazer piada com essa de entrar por trás, mas vi que o cara quis me adiantar e fiquei na minha. Saí correndo, pescoço ruim, dor nas juntas, fodido e meio, e retornei ao coletivo. Vazio, a lata de metal gigante roncava devagar. Sentei no último banco, abri a janela e deixei que o sol e o vento fresco (sem viadagem) me dessem uma moral. A cada arranque, um impulso pra frente, uma queixada no peito, só aí percebi que adormecia entre um sinal fechado e outro. A baba escorria pelo rosto. O pequeno galo que se formava na fronte por causa das porradas que dava na lateral da lata. Então eram dois lados amassados: um pela almofada de renda que minha mãe me deu; o outro pelo vidro embassado de gordura da pele. E seguia tranquilo à minha sessão de análise – fingindo esquecer que estava devendo para quem cuida da minha cabeça do pescoço duro.


Aí, olhava as ruas e as placas. Generais, viscondes, marqueses, todos esses merdas da realeza de algum lugar, revolucionários de épocas, todos bêbados, todos pinguços, tenho certeza. Por isso que bebo, pra ser um fracassado morto, depois de ser um herói vivo. Bebo pra fingir que sou algum nobre de araque, já que minha patente é de vagabundo condecorado. Pena que tenho que trabalhar, que vergonha. Aí, vejo as sapatarias, as padarias, os brechós, os restaurantes, os botecos (ai que aperto no coração), as floriculturas. Vejo as mulheres do Vaga Certa... Porra, aí é do caralho, lembro das faxineiras do escritório, as da madrugada, por causa do uniforme de bate-bola, começo descaralhar de rir no ônibus, alto pra cacete, nego me olha torto, mas depois tiram o olho, porque começo a pigarrear com a gargalhada, tusso que nem um gago engasgado. E fico pensando: que filhas da puta! Vestidinhas de fetiche e ainda com os dizeres: vaga certa... porra, metia bonito meu caminhão ali. Sem tíquete, é óbvio.


Desço do ônibus e agradeço a carona. Chego ao consultório arrotando alho do último jantar, puta duma azia. Sigo em frente e ela me diz:

- Torcicolo é coisa de teimoso, Gregorio. Na sua infância blábláblá, etc. - ela falava e eu lembrava da última sessão, que foi meio fantasiosa..

E eu engulo seco e sinto o terreno:

- Mas eu tô te devendo alguma coisa?

E ela arremata, ou melhor, conclui, como dizem os psicanalistas:

- Só o uniforme de faxineira...